terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Afortunada, realmente afortunada*







..."Afortunada cresceu rápido, rodeada do carinho dos gatos. Com um mês de
vida, morando no bazer de Harry, era uma jovem e esbelta gaivota de sedosas
penas prateadas.
Quando havia turistas no bazar, seguindo as instruções de Colonello, ficava
bem quieta entre as aves embalsamadas, simulando ser uma delas. Pelas tardes,
quando o bazar fechava, e o velho lobo-do-mar se retirava, então andava de um
lado para o outro com seus movimentos bamboleantes de ave marinha, por todos os
quartos, maravilhando-se com os milhares de objetos que havia ali, enquanto
Sabetudo repassava livros e livros procurando o método para que Zorba a
ensinasse a voar.
-Voar consiste em empurrar o ar para trás e para baixo. Ah! Agora já temos uma
informação importante - miava com o nariz enfiado nos livros.
-E por que devo voar? - grasnava com as asas bem junto ao corpo.
-Porque você é uma gaivota, e as gaivotas voam - respondia Sabetudo. Me parece
terrível, terrível! Que você não saiba disso!
-Mas eu não quero voar. Nem quero ser gaivota. Quero ser gato, e os gatos não
voam - retrucava Afortunada.
Uma tarde se aproximou do balcão de entrada e teve um desagradável encontro
com o chimpanzé.
- Nada de fazer cocô por aí, pássaro esquisito! - guinchou Matias, mal a viu.
- Por que me diz isso, senhor macaco? - perguntou timidamente.
- É só o que fazem os pássaros. Cocô. E você é um pássaro - repetiu,
muito seguro do que dizia.
- Engano seu. Sou um gato e muito limpo. Ocupo a mesma caixa de Sabetudo -
grasnou, tentando conseguir a simpatia do chimpanzé.
- Ah! Ah! O que acontece é que essa patota de sacos de pulgas convenceu você
de que é um deles. Olhe para seu corpo: você tem penas, e os gatos têm
pêlos. E o rabo? Hein? Onde está o seu rabo? Você está tão louca como esse
gato que passa a vida lendo e miando "terrível, terrível". Pássaro idiota!
Quer saber por que seus amigos mimam você? Porque estão esperando você
engordar para fazerem um belo banquete. Eles comerão você com pena e tudo! -
guinchou o chimpanzé.
Naquela tarde, os gatos acharam esquisito a gaivota não ter vindo comer seu
prato favorito, as lulas que Secretário trazia do restaurante.
Preocupados, foram procurá-la, e foi Zorba quem a encontrou, encolhida e
triste, entre os animais empalhados.
- Está sem fome, Afortunada? Hoje temos lula - miou Zorba.
A gaivota não abriu o bico.
- Está se sentindo mal? Está doente? - insistiu, preocupado, Zorba.
- Quer que eu coma para engordar? - perguntou, sem olhar para ele.
- Não. Para que você cresça sadia e forte.
- E, quando estiver gorda, vai convidar as ratazanas para me comerem? - grasnou,
com os olhos cheios de lágrimas.
- De onde tirou essas bobagens? - miou, enérgico, Zorba.
Choramingando, Afortunada lhe contou tudo o que Matias lhe guinchara. Zorba
lambeu as lágrimas dela e, num instante, miou como nunca tinha feito antes.
- Você é uma gaivota. Nisso o chimpanzé tem razão, mas só nisso. Todos
amamos você, Afortunada. E amamos porque você é uma gaivota, uma linda
gaivota. Não nos opusemos quando ouvimos você grasnar que era um gato, porque
nos sentimos envaidecidos vendo que quer ser como nós. Mas você é diferente e
gostamos que seja diferente. Não nos foi possível ajudar sua mãe, mas a
você, sim. Temos protegido você desde que saiu do ovo. Nós lhe demos todo
nosso carinho, sem nunca pensar em fazer de você um gato. Gostamos muito de
você ser gaivota. Sentimos que você também nos quer bem. Somos seus amigos,
sua família e é bom que saiba que com você aprendemos uma coisa que nos
enche de orgulho: aprendemos a apreciar, respeitar e amar um ser diferente. É
muito fácil aceitar e amar os que são iguais a nós, mas fazer isso com
alguém diferente é muito difícil, e você nos ajudou a conseguí-lo. Você
é uma gaivota e deve seguir seu destino de gaivota. Deve voar. Quando você
conseguir isso, Afortunada, posso garantir que será feliz, e então os seus
sentimentos e os nossos serão mais intensos e belos, porque será um carinho
entre seres totalmente diferentes.
- Sinto medo de voar - grasnou Afortunada, ficando de pé.
- Quando chegar a hora, eu estarei com você. Prometi isso a sua mãe - miou
Zorba, lambendo-lhe a cabeça.
A jovem gaivota e o gato grande, negro e gordo começaram a caminhar. Ele lambia
com ternura a cabecinha dela, e ela cobriu as costas dele com uma asa
estendida...."

"O gato que ensinou uma gaivota a voar" de Luis Sepúlveda. São Paulo: FTD,
1999

Um comentário:

Manuel Marques disse...

Maravilhoso este livro! Beijocas amiga linda!!!