segunda-feira, 2 de julho de 2007

FALA DO SOLDADO










Roubam-nos o tempo,
o corpo
o nome.

Somos carne ou pouco mais que carne,
uma placa ao pescoço, uma inscrição, um número.

Vamos
a marchar
seguindo
através das navalhas da noite
sem olhar para o lado.

Roubam-nos os olhos,
fazem-nos dizer adeus
à casa, aos filhos, à mulher,
à própria carne.

Somos carne ou pouco mais que carne,
somos lixo.

Vamos
sem olhar o norte,
o sul,
a estrela da manhã.
Vamos
sem saber em que comarca
do medo nos enterram.
Vamos
vazios de desejos ou cantigas,
com a cabeça a estalar
e uma dor mineral a tocar tambor
em cada osso.

Somos carne ou pouco mais que carne,
pétalas negras, pássaros com farpas
de cristal na carne.

Mas são as botas que nos doem mais.
As botas
e também atrás da nuca.

E assim seguimos cumprindo um destino
de agulhas de metal,
ou melhor,
limpando o terreno,
quer dizer,
matando, mutilando, espalhando braços e pernas
por toda a extensão da paisagem,
fazendo
com que as botas nos fiquem cada vez mais
apertadas.

Somos carne ou pouco mais que carne.
E um dia havemos de explodir
em todas as direcções.

E nem os terapeutas da fala
nos podem impedir de fazer chover o nosso grito
sobre os pálidos telhados da cidade.




("Linha da frente", José Fanha e José Jorge Letria, Ed. Ausência)

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