quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Funeral de um lavrador - Chico Buarque

Reflexâo




... Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão

Teias




Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o que quer que seja:
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.

Eugénio de Andrade

... pergunta-me qualquer coisa




... pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto

As Mãos



As mãos
são a paisagem do coração.
Elas se separam às vezes
como desfiladeiros
para que forças indescritíveis rolem.

A mesma mão que o homem
apenas abre quando cheia de fadiga,
agora ele percebe:
por causa dele somente,
outros podem caminhar em paz...

Mãos são como paisagem.
Quando se abrem,
a dor de suas mágoas
corre livre como riacho.
Porém, sem sentimento de dor...
sem grandeza de dor...
Apenas para sua própria
maravilha de grandeza
Ele não conhece a forma
de nomear a mesma.


Andrzej Jawien
(pseudónimo literário de João Paulo II)
1960

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Caetano Veloso - Sampa

Rifa-se um coração quase novo.


Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que na realidade
está um pouco usado, meio calejado, muito machucado
e que teima em alimentar sonhos, e cultivar ilusões.
Um pouco inconsequente
que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado,
coração que acha que Tim Maia estava certo
quando escreveu... "não quero dinheiro,
eu quero amor sincero, é isso que eu espero...".
Um idealista...
Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece,
e mantém sempre viva a esperança de ser feliz,
sendo simples e natural.
Um coração insensato que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando relações
e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste
em cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que,
abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas,
mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado,
ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado
indicado apenas para quem quer viver intensamente e,
contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida
matando o tempo, defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente
que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas:
" O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer".
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro
que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que,
ainda não foi adotado, provavelmente,
por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que,
mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar, mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence seu usuário
a publicar seus segredos e, a ter a petulância
de se aventurar como poeta.


Clarice Lispector

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Vogais de água




"há lugares onde chegam vogais de água
lugares novos espantados que assomam à memória
por redes vertiginosas

as suas entoações concentram-se em palavras fabulosas
palavras luminosas sur-
preendidas pelos castiçais dos ii

um projecto de água

digo:

transportar o sonho de um lado para outro
abrir com toda a força um buraco nos espelhos"

Maria Azenha

Vergílio Ferreira



Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contenção beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.




Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

the bridges of madison county

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Fui à beira do mar



Fui à beira do mar
Ver a que lá havia
Ouvi uma voz cantar
Que ao longe me dizia

Ó cantador alegre
Que é da tua alegria
Tens tanto para andar
E a noite está tão fria

Desde então a lavrar
No meu peito a Alegria
Ouço alguém a bradar
Aproveita que é dia

Sentei-me a descansar
Enquanto amanhecia
Entre o céu e o mar
Uma proa rompia

Desde então a bater
No meu peito em segredo
Sinto uma voz dizer
Teima, teima sem medo
ZECA AFONSO

cançao de embalar - zeca afonso

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Não há limite....





Não há limite, nem fronteira ou horizonte para o salto humano de quem voa nos céus. Não há cores mais incandescentes do que as de um sonhar impossível, nem reflexos mais brilhantes do que os da saudade antecipada. Não há momento mais desejado do que o do perpétuo movimento, o rodopiar enlouquecido do homem que voa nos céus.

José António Barreiros

ODE À PAZ






Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida !


Natália Correia

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

massagem erótica

Da tristeza à esperança...




"Quando tiveres uma lágrima de tristeza,
Parte-a ao meio! Dá-me metade e chorarei contigo!
Quando tiver um sorriso de alegria e singeleza,
Dou-to inteiro, só para te ver feliz, meu Amigo!"

Se as amarguras desta vida te travarem,
Não desistas, nem desanimes. Apenas sorri!
Não deixes os sulcos da tristeza se gravarem
Chama por mim! Para ti, estou sempre aqui.

Dá-me a tua mão, enche o peito de ar!
Anda, vamos os dois voar pelo céu infinito...
Outros horizontes vamos, pois, encontrar,
Soltaremos ao universo nosso pleno grito...

Tudo é cíclico, nesta grande aventura de viver.
"Atrás de tempos, tempos vêm" - é o que dizem!
Se teu olhar não tiver lágrimas, mas souber ver,
As coisas hão-de mudar, aprenderás a SER.

E, lentamente, o teu sorriso poderá voltar.
Uma nova energia inundará todo o teu ser...
Dentro de ti, está toda a capacidade de amar,
Apenas tu e só tu a poderás fazer acontecer!

José António

SÍSIFO





Recomeça....
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...

Miguel Torga

Palavras em Serrúbia




“Eis o que tenho a pedir-vos nos meus oitenta anos: plantem nesse lugar um plátano, onde o vento enroladinho no sono possa dormir sem sobressaltos; ou uma oliveira, ou um chorão, e à sua roda ponham uma sebe da flor doce e musical de espinheiro branco. Embora tenha pouca ou nenhuma fé seja no que for, a terra ficará mais habitável. Um poema ou uma árvore podem ainda salvar o mundo.”

Eugénio de Andrade Palavras em Serrúbia (2003)

Tambores pela paz



Tocam os tambores,
difundindo por toda a parte os sons
que anunciam a Paz...


Ecoam pelos ares os cantares,
acompanhando a forte batida dos tambores
que enaltecem a Paz...


Oh! Quão hábeis são essas mãos
que batucam os tambores.
Como são melodiosas as vozes
que entoam os cânticos!


Uma mistura de sons e ritmos;
Mistura de gentes,
formando o arco íris da concórdia
num baile único.


Os Tambores pela Paz batucam forte, e tabucarão sem cessar,
até fazerem chegar o eco
ao mais recôndito dos lugares da portentosa Angola.

Celestina Fernandes

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Antonio Variações - Humanos - Muda de Vida - Sic Noticias

Sorrisos mutilados





"No meu país
a (in)competência doentia
mutila-nos o sorriso
e nós teimosamente
arranjamos muletas e sorrimos
deitados à sombra da esperança
esculpida pela nossa paciência
Coragem, gente
pois galopa celere o instante
em que sorriremos sem muletas!"


Carlos Zimba

Poema de esperança







... Os pássaros voarão
E o mundo encher-se-á de suas penas

Calados nos ouviremos segredando
Fazendo do horizonte uma linha longa,

Tu tremerás receosa do infinito
Mas eu estarei junto de ti...

E será doce ou triste aquele poente...?
Porém tu me dirás sorrindo:

— Que importa? São tuas as linhas desta mão...


Arnaldo Santos

Quando... de Antonio Castel Branco





Quando o tempo parece acabar,

a esperança fugir,

o medo dominar...

Quando o bem parece esconder-se,

a guerra alastrar,

a ignomínia vencer...

Quando a tristeza te sufoca,

os soluços te emudecem,

as lágrimas te querem afogar...

Quando te questionas,

de tudo já duvidas,

só ouves lamuriar...

Quando pareces carregar

todo o mundo às costas...

Quando te encontras só,

prestes a desesperar,

sem ser já capaz de sonhar...

Quando pareces já ter olvidado

a doce sensação de sorrir

e o calor de receber um sorriso...

Quando teu céu

permanece nublado,

sem réstias de luz...

Quando tua alma desespera

nos caminhos tortuosos

em busca da perfeição...

Quando teu ser estremece

de raiva surda e contida

ante tanta podridão...

Quando queres desistir,

deixar de te preocupar,

deixar de viver...

vegetar...



Procura uma criança...

Penetra no seu olhar...

E de pronto sentes

a esperança renascer,

o teu rosto sorrir,

a alma aquecer.

Pois nesse olhar descobres

o bem, a paz, o amor

que no mundo alastrará...

Olhar profundo...

triste, medroso, ardente...

revelando a todos nós,

a todos que querem ver,

o caminho, o rumo...

da tolerância...

da amizade...

da solidariedade...

da paz.

E imerso nesse olhar

renascerás...

reaprendeste a viver!


Sintra, 03/10/2006

HUMANOS - QUERO É VIVER

Pedro Abrunhosa - Momento

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

O Verdadeiro Gesto de Amor




Aquilo que de verdadeiramente significativo podemos dar a alguém é o que nunca demos a outra pessoa, porque nasceu e se inventou por obra do afecto.
O gesto mais amoroso deixa de o ser se, mesmo bem sentido, representa a repetição de incontáveis gestos anteriores numa situação semelhante. O amor é a invencção de tudo, uma originalidade inesgotável. Fundamentalmente, uma inocência.


Fernando Namora, in "Jornal sem Data"

domingo, 18 de fevereiro de 2007

PÁGINA DE ESCRITA


PÁGINA DE ESCRITA




Dois e dois quatro
quatro e quatro oito
oito e oito dezesseis.
Outra vez! diz o mestre.
Dois e dois quatro
quatro e quatro oito
oito e oito dezesseis.
Olha o pássaro-lira
passeando pelo céu!
O menino o vê.
O menino o ouve.
O menino pede:
vem cá
brinca comigo
meu amigo!
Então o pássaro vem
para brincar também:
dois e dois quatro...
Outra vez! diz o mestre
e o menino repete
e o pássaro se mete...
Quatro e quatro oito
oito e oito dezesseis
e dezesseis e dezesseis?
Quem não souber perde a vez
mesmo se for trinta e dois
de qualquer modo
já se foi.
Mas o menino o ocultou
na sua carteira
e todos os meninos
ouvem quando ele pia
e todos os meninos
ouvem sua melodia
e oito e oito por sua vez vai embora
e quatro e quatro e dois e dois
por sua vez vai dando o fora
e um e um não faz nem um nem dois
pois um a um também escapou na hora.
E o pássaro-lira apronta
e o menino vibra
e o mestre mete bronca:
Não vai parar de bancar o palhaço?
Mas os meninos todos
ouvem a melodia
e as paredes da sala
tranqüilamente arriam.
E as vidraças tornam-se areia
a tinta volta a ser água
torna-se árvore a carteira
o giz volta a ser rocha
a pena de escrever torna a ser pássaro.
Jacques Prévert

sábado, 17 de fevereiro de 2007

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Amazónia

SOU ASSIM




SOU ASSIM
Zelisa Camargo

Um ser sempre em busca,
carregando n'alma uma grande esperança
nunca vergando diante os acoites da vida
superando os obstáculos,
pois acredito que sempre conseguimos
superar todas adversidades.
Somos seres alquímicos e tudo conseguimos
transmutar, basta quereremos e seguir
avante sem nunca esmorecer.
Sou guerreira da paz e do amor,
Com esperança viva no coração.
Como Loba uivo pela Paz e Amor.
Sempre lutando pela Mãe Terra.
Como Águia procuro levar a sabedoria adquirida.
Sou da mata, cabocla nativa
que anda com pés descalços
sangrentos em muitos momentos,
mas sempre prosseguindo o caminhar.
Mesmo que as portas se encontram fechadas
e os corações endurecidos,
nunca desisti da luta.
Vivo o momento como se fosse o ultimo,
mas sempre na esperança de um novo respirar.
Amo a vida.
Amo esse planeta que ora habito
e aprendendo de humano
para um dia entender os humanos .
Tenho saudades de minha casa
e momentos que penso em voltar,
mas muito a fazer aqui ainda.
E esperança de um mundo maior
onde tornaremos irmãos
e caminharemos de mãos dadas,
não importando a cor, a ração, o credo.
Mas sempre caminhando para a Unicidade
e o amor verdadeiro.
Sou assim um ser simples
carregando um amor que transborda
querendo dar a ti meu amigo de caminhada
meus momentos vividos e sentidos
em intensidade d'alma.
Dê-me tuas mãos
e vamos em busca da tão sonhada Paz.
Ela existe dentro de cada um de nós.
Jogue-a ao cosmos
que ela retornará a esse planeta
tão carente de amor e luz.
Acreditem em si
É a chave do grande mistério da vida
Pois se acreditas em ti
Acreditas no Deus do Amor.
Pois tu és ele
vivendo numa carcaça humana.
Mas nunca se esqueça que és um Ser divino
e tudo pode.
Assim sou eu.
Um simples peregrino da vida
que caminha só.
Mas não em solidão,
mas em quietude
e solicitude.

05.07.04
16.22

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Bob Dylan & Joan Baez Blowing in the wind




Denise Casatti *

Viagem compensadora
Ah, e quantas cenas maravilhosas eu já vi... Descobri que saborear um doce traz uma alegria espontânea às pessoas. Você não pode imaginar cada expressão linda que surge de um rosto quando prova uma pazinha.

E, veja bem, eu nunca gastei um centavo com propaganda. Mas o que já veio de jornalistas e repórteres na minha barraca não tá escrito! E eu não teria dinheiro para pagar nem um segundo na televisão, mas a coisa acontece.

Assim, vem sempre pessoas de outros países aqui e eu trato com muito amor. Não sou poliglota, mas sei que carinho, amor e respeito todo ser humano tem direito e é uma linguagem universal, não importa se é alemão, argentino, americano, francês, etc. Um dia veio um grupo de americanos e bateu no meu coração que eu deveria mostrar para eles o que é o Brasil. Peguei cocada, coloquei por debaixo da pazinha, botei goiaba em cima e, por último, salpiquei paçoquinha de amendoim. Enchi umas três, quatro pazinhas e falei: experimentem! Você tinha que ver aqueles rostos! Os olhinhos brilhavam e eu falei: vão aprendendo o que é Brasil!

Aí, no final do ano passado, aconteceu uma cena belíssima. Chegou um casal mais ou menos da minha idade e mostraram um livro para mim e diziam, com muita dificuldade:

- Oooobeeeen...

Então, o homem colocou o livro nas minhas mãos e eu vi que era o guia turístico de Paris. Aí eu pedi para uma pessoa que sabia traduzir francês ler aquele trecho para mim:

- Quando estiver em São Paulo, vá, no sábado, na praça Benedito Calixto, e visite a feira de artes, cultura e lazer. Não se esqueça de ir à barraca de doces do Obeny.

Eu achei aquilo tão bonito! Meu Deus do céu! Como isso foi parar em Paris? Eu não fui à França fazer propaganda. Aí eu vi que você colhe na vida o que planta!

Closer

Fadas contadas - José Jorge Letria


A CLARIDADE DAS FADAS

Era uma vez um castelo feito de pedra negra e húmida, que se erguia, alto e
assustador, no cimo da montanha mais alta que havia num país de guerras e
guerreiros.

Ninguém se atreveria a pensar que naquele país moravam também fadas, com as
suas varinhas de luz e magia serena. Mas, por estranho que possa parecer,
moravam mesmo e usavam nomes bonitos e suaves. Pó de Estrelas, chamava-se uma.
Lua Branca, chamava-se outra. Fio de Luar, outra ainda. Era por estes nomes
pouco vulgares num país de guerras e guerreiros que eram conhecidas.

Havia quem sonhasse com elas um bocadinho todas as noites, à espera que
aparecessem para tornarem o país mais luminoso e alegre. Mas elas tinham medo
de aparecer. Viviam fechadas entre o arvoredo alto e verde da floresta e era
ali que faziam as suas magias e brincadeiras e cozinhavam sonhos e traquinices
dentro de um enorme caldeirão de vidro azul.

Só os unicórnios, as pombas e os esquilos conheciam o seu paradeiro e as
visitavam, a qualquer hora do dia ou da noite, para conversarem de tudo o que
lhes vinha à cabeça, mesmo das coisas sem importância de que quase ninguém
fala por achar que não vale a pena.

O rei D. Escuro II, que governava o país, gostava da escuridão e não se
importava que os outros vivessem nela, com os olhos tapados por nuvens sombrias
e farrapos de treva. Achava mesmo que essa era a melhor maneira de manter por
muitos e muitos anos o seu mando, feito de escuridão e falas a meia voz.

Aconteceu porém que um dia uma forte tempestade, vinda das bandas do mar,
abalou todo o país, fazendo estremecer castelos, cavalos e guerreiros,
semeando o medo entre as crianças e os animais da floresta.

Tão forte soprava a ventania que uma das fadas, a Fio de Luar, que se
encontrava a contar as estrelas do céu no ramo mais alto de um velho cedro,
foi arrastada, sem poder resistir, pelos braços poderosos do vento.

Voou, voou durante horas, sem rumo certo, não sabendo onde iria cair quando a
tempestade amainasse. Quando, ao alvorecer, o vento abrandou, deixou de
relampejar e a chuva parou de cair, a pequena fada, toda vestida de luz, foi
cair num grande salão de mármore negro, onde a única claridade era a do seu
rosto e a da sua varinha mágica. Não tardou a descobrir que se tratava da
sala do rei D. Escuro II que, sem demora, apareceu na sua presença, para lhe
pedir contas de tão inesperada visita.

«Que fazes tu aqui, pequena fada?» - perguntou.

«Vim aqui parar sem o querer, arrastada pela ventania» - respondeu Fio de
Luar.

«Tenho que decidir - disse o rei - o que vou fazer contigo, porque isto
não é sítio para fadas.»

Durante horas, o rei e os seus conselheiros discutiram o que haviam de fazer com
a pequena fada luminosa. Um dos conselheiros sugeriu então:

«Como vamos ter uma festa no palácio, podíamos pendurá-la no tecto para
animar os nossos convidados.»

Todos concordaram com a ideia, sem se darem conta de que, dessa maneira, iriam
encurtar o tempo do seu mando.

Içada a pobre fada para o tecto da sala no dia da festa, começou, sem que
ninguém lho ordenasse, a derramar a luz em todas as direcções, o que deixou
os convidados com a boca aberta de espanto.

«Que luz tão bonita!» - exclamavam.

«Nunca se viu uma coisa assim» - comentavam.

Daí até exigirem ao rei que arranjasse uma luz igual àquela para os outros
castelos e lugares públicos do reino foi um instante. O rei, claro, não
concordou e respondeu-lhes que se havia sítio onde não podia haver claridade,
esse sítio era o reino, porque a luz lhe fazia doer os olhos e a cabeça.

Pouca importância deram às preocupações do rei. De tal maneira que, por toda
a parte começaram a aparecer, mesmo nas casas mais modestas, pequenas fadas
luminosas, não suspensas do tecto para darem claridade, mas tratadas com
respeito e amizade, como se fizessem parte da família.

Assim se mudou a face inteira do reino, o seu rosto escuro e triste. O mando
passou a partir daí a ser uma coisa clara e simples, em vez de ser escura e
dolorosa.

Por toda a parte, sempre que as fadas estão em festa, é o triunfo da luz e da
claridade das manhãs que estão a festejar.







in José Jorge Letria, Fadas contadas

Sintra: C.M.Sintra, 1988

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007




Denise Casatti *

Eu peguei meu barquinho de madeira, que eu tinha feito com minhas próprias mãos, meu remo e reuni toda a coragem para dizer adeus. Os 25 mil tripulantes do transatlântico, ao verem a cena
- eu, sozinho, a caminho do oceano -, gritavam:

- Você vai morrer, Obeny!

Eu saí aos prantos, dizendo que conseguiria. Quando coloquei meu barquinho no meio daquele mar, ainda podia ouvir os apelos. Chegar à terra era mais do que me sentir seguro, era começar a realizar o sonho que eu guardara tantos anos dentro do peito, e que eu jurara tantas vezes, em silêncio, que um dia atenderia.

Era 1982 e a lembrança do barquinho no mar me arrepia até hoje, chego a encher os olhos d'água. Foi a metáfora que encontrei para selar com poesia o fim dos meus trinta anos de trabalho na indústria automobilística. Trinta anos como técnico de engenharia de produção, tempo de aprender a organização, a disciplina, a austeridade de uma grande empresa. Tempo de comprar os ingredientes para preparar o doce sonho.

Quando a aposentadoria chegou, fui fazer o que tinha que fazer: pedir demissão. O chefe não se conformou. Eu tinha tudo: casa, carro, dinheiro... O que mais poderia querer? O que me faltava? Eu disse:

- Agora vou fazer o que mais gosto na vida: doce brasileiro.

Ele me olhou espantado ao escutar a paixão revelada, falou que eu era louco e que, se precisasse de qualquer coisa, minha vaga estaria garantida. Graças a Deus, nunca voltei.
Na época em que ainda navegava pelo transatlântico, também exerci a profissão em que me formei: psicologia. Movido pelo meu amor pelo ser humano, durante dez anos conciliei o trabalho na indústria durante o dia com a lida no consultório durante a noite.

Eu tratava de alcoólatras e viciados, pois tinha autoconfiança. Sabia que era capaz de entrar em uma roda de fumo e não ser contagiado. Eu conversava com o paciente, conquistava sua confiança e saíamos daquela situação de braços dados. Era como se eu visse uma pessoa se afogando, a água já passando da altura do pescoço, e nadasse para buscá-la com a convicção de que a tiraria dali. Era uma força muito grande, movida por coragem e confiança, sem medo. As coisas dentro do meu ser são assim, acho que isso vem da minha formação e da estrutura que construí em mim por causa dos muitos anos em uma grande empresa.

Mas a ética da psicologia impedia que eu fosse verdadeiramente Obeny. No consultório, eu tinha que seguir as regras profissionais, não podia simplesmente fazer o que sentia vontade, o que meu coração mandasse. Se quisesse ir abraçar uma pessoa que sentia precisar de um abraço, não podia. Tinha que dizer apenas "oi, bom dia!".

Sei que não sou regra para ninguém, mas queria me sentir bem com as coisas que fazia e não ter a reserva de passar para o outro o que estava sentindo. Estou mais realizado aqui, na minha barraca de doces, onde posso pegar uma pazinha de cocada e oferecer para quem meu coração indicar. Posso também dizer "eu te amo" para quem eu perceber que precisa ouvir essas palavras. Talvez eu continue salvando náufragos com esses pequenos gestos. Talvez, agora, eu esteja pronto para realizar esses salvamentos cotidianos porque saí de um transatlântico em um barquinho de madeira e também posso ser considerado um náufrago.

Acho que só podemos levar o outro até onde fomos capazes de chegar. Eu cheguei à terra firme. Eu acordei e me sinto capaz de acordar pessoas. Sei que um "eu te amo" é capaz de penetrar em camadas de ferrugem e revelar a beleza humana profunda. Nessa hora, não importa se quem está na minha frente é homem, mulher, branco, índio, negro, um de meus seis filhos, um de meus seis netos... Importa apenas que é um ser

Somewhere in Time - 2

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

sound of silence

Afortunada, realmente afortunada*







..."Afortunada cresceu rápido, rodeada do carinho dos gatos. Com um mês de
vida, morando no bazer de Harry, era uma jovem e esbelta gaivota de sedosas
penas prateadas.
Quando havia turistas no bazar, seguindo as instruções de Colonello, ficava
bem quieta entre as aves embalsamadas, simulando ser uma delas. Pelas tardes,
quando o bazar fechava, e o velho lobo-do-mar se retirava, então andava de um
lado para o outro com seus movimentos bamboleantes de ave marinha, por todos os
quartos, maravilhando-se com os milhares de objetos que havia ali, enquanto
Sabetudo repassava livros e livros procurando o método para que Zorba a
ensinasse a voar.
-Voar consiste em empurrar o ar para trás e para baixo. Ah! Agora já temos uma
informação importante - miava com o nariz enfiado nos livros.
-E por que devo voar? - grasnava com as asas bem junto ao corpo.
-Porque você é uma gaivota, e as gaivotas voam - respondia Sabetudo. Me parece
terrível, terrível! Que você não saiba disso!
-Mas eu não quero voar. Nem quero ser gaivota. Quero ser gato, e os gatos não
voam - retrucava Afortunada.
Uma tarde se aproximou do balcão de entrada e teve um desagradável encontro
com o chimpanzé.
- Nada de fazer cocô por aí, pássaro esquisito! - guinchou Matias, mal a viu.
- Por que me diz isso, senhor macaco? - perguntou timidamente.
- É só o que fazem os pássaros. Cocô. E você é um pássaro - repetiu,
muito seguro do que dizia.
- Engano seu. Sou um gato e muito limpo. Ocupo a mesma caixa de Sabetudo -
grasnou, tentando conseguir a simpatia do chimpanzé.
- Ah! Ah! O que acontece é que essa patota de sacos de pulgas convenceu você
de que é um deles. Olhe para seu corpo: você tem penas, e os gatos têm
pêlos. E o rabo? Hein? Onde está o seu rabo? Você está tão louca como esse
gato que passa a vida lendo e miando "terrível, terrível". Pássaro idiota!
Quer saber por que seus amigos mimam você? Porque estão esperando você
engordar para fazerem um belo banquete. Eles comerão você com pena e tudo! -
guinchou o chimpanzé.
Naquela tarde, os gatos acharam esquisito a gaivota não ter vindo comer seu
prato favorito, as lulas que Secretário trazia do restaurante.
Preocupados, foram procurá-la, e foi Zorba quem a encontrou, encolhida e
triste, entre os animais empalhados.
- Está sem fome, Afortunada? Hoje temos lula - miou Zorba.
A gaivota não abriu o bico.
- Está se sentindo mal? Está doente? - insistiu, preocupado, Zorba.
- Quer que eu coma para engordar? - perguntou, sem olhar para ele.
- Não. Para que você cresça sadia e forte.
- E, quando estiver gorda, vai convidar as ratazanas para me comerem? - grasnou,
com os olhos cheios de lágrimas.
- De onde tirou essas bobagens? - miou, enérgico, Zorba.
Choramingando, Afortunada lhe contou tudo o que Matias lhe guinchara. Zorba
lambeu as lágrimas dela e, num instante, miou como nunca tinha feito antes.
- Você é uma gaivota. Nisso o chimpanzé tem razão, mas só nisso. Todos
amamos você, Afortunada. E amamos porque você é uma gaivota, uma linda
gaivota. Não nos opusemos quando ouvimos você grasnar que era um gato, porque
nos sentimos envaidecidos vendo que quer ser como nós. Mas você é diferente e
gostamos que seja diferente. Não nos foi possível ajudar sua mãe, mas a
você, sim. Temos protegido você desde que saiu do ovo. Nós lhe demos todo
nosso carinho, sem nunca pensar em fazer de você um gato. Gostamos muito de
você ser gaivota. Sentimos que você também nos quer bem. Somos seus amigos,
sua família e é bom que saiba que com você aprendemos uma coisa que nos
enche de orgulho: aprendemos a apreciar, respeitar e amar um ser diferente. É
muito fácil aceitar e amar os que são iguais a nós, mas fazer isso com
alguém diferente é muito difícil, e você nos ajudou a conseguí-lo. Você
é uma gaivota e deve seguir seu destino de gaivota. Deve voar. Quando você
conseguir isso, Afortunada, posso garantir que será feliz, e então os seus
sentimentos e os nossos serão mais intensos e belos, porque será um carinho
entre seres totalmente diferentes.
- Sinto medo de voar - grasnou Afortunada, ficando de pé.
- Quando chegar a hora, eu estarei com você. Prometi isso a sua mãe - miou
Zorba, lambendo-lhe a cabeça.
A jovem gaivota e o gato grande, negro e gordo começaram a caminhar. Ele lambia
com ternura a cabecinha dela, e ela cobriu as costas dele com uma asa
estendida...."

"O gato que ensinou uma gaivota a voar" de Luis Sepúlveda. São Paulo: FTD,
1999

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Existem dias....




Existem dias na nossa vida, em que as mãos gelam, e os olhares perdem a cor. Sentimos um aperto e que não pertençemos a lado nenhum. Mesmo assim tentamos descobrir caminhos alternativos, ou então teimamos a seguir o caminho tradicional e tão familiar.

Apesar de termos várias portas por abrir e caminhos por desbravar, por vezes falta o empenho e a coragem. Por vezes temos que seguir na solidão por muito que doa. Por vezes estamos demasiado acompanhados para nos sentirmos verdadeiramente a companhia dos outros. O que eu quero dizer, é que podemos ter gente em nosso redor, podemos rir muito, falar alto, até ser a pessoa mais cómica ... mas o nosso interior em nada se assemelha a estas situações...
Pode ser que ninguém se aperceba e assim ninguém se incomoda ... pode ser que alguém se aperceba ... e mesmo assim juramos a pés juntos que não se passa nada e que tudo está bem.


Podem nos abraçar e até dar a mão ... mas muitas vezes nem conseguimos perceber o que nos conforta ... tudo à nossa volta parece baço, como vidros embaciados pelo ar quente ... podemos ditar segredos a esses vidros e ninguém irá saber, ninguém os irá descobrir, a nossa dor é partilhada e não incomodamos ninguém... apenas não temos um feedback, mas falamos ...

Agora vou ali segredar ao vidro, e pode ser que assim com o desaparecer do ditado a dor se vá também um pouco.

http://grace-talk.livejournal.com/

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Saludos Amigos-Aquarela do Brasil

Infância




MEU PAI montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.


No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala _ e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando para mim:
— Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.


E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

O Menino que carregava Água na Peneira

O Menino que Carregava Água na Peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens
com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos

Manoel de Barros

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

In José Jorge Letria, Cartas aos heróis


Meu querido amigo,



Espero que te encontres bem no topo da tua altura de gigante das histórias do meu tempo de ser menino.
Tu foste o gigante e o anão dos meus sonhos enfeitados de mar e de chuva miudinha. Embarquei contigo nas naus que iam para toda a parte sem chegarem a parte nenhuma, e fui, como tu, marinheiro, soldado, aventureiro, conselheiro de reis e motivo de espanto para homens do tamanho de um polegar. Mas tudo a sonhar. Sempre e só a sonhar. Ai Gulliver, se tu soubesses como me fizeste perder o sentido da distância e a verdadeira medida das coisas. O que um dia era gigante, no outro tinha a pequenez de uma ervilha ou de uma pérola de orvalho.
Espero que te encontres bem e que, quando te apetecer sair do livro do Senhor Swift, me escrevas ou me telefones para eu ir contigo ao cais mais longínquo da bruma e da tempestade.
Tu deves saber onde eu moro, porque personagens como tu nunca se esquecem de quem as leu, amou e admirou.

Eu cresci contigo enquanto tu crescias e minguei a teu lado quando tu te tornavas anão. Contigo percebi que o nosso tamanho, na realidade, depende sempre dos olhos de quem nos vê.

Não te esqueças de dar notícias, porque eu continuo a ter um barco pronto para as grandes viagens que tu deixaste por fazer. É só fazer a mala e partir. A mala não: um saco de lona com a roupa leve que se deve vestir te esqueças de dar notícias. Ainda me hás-de ensinar de que forma é que os homens, as ilhas e os países mudam de tamanho no grande mar dos livros, no oceano dos sonhos mais antigos.





In José Jorge Letria, Cartas aos heróis

Porto: Ambar, 1998

Dead Can Dance - Yulunga




Paz para todos!!!